12.12.22

Danças com a Morte

Há dias em que a pele estala no pressentimento da morte, que passa tão perto. Dias de frio interior, inquietude que não se explica. Tudo fica. Parado. O coração aperta.
 
Nestes dias o cheiro da morte é mais nítido. Pois que ela se passeia calmamente entre os encarnados. Varrendo e confirmando os desencarnes que se aproximam. Para que os posso acolher de braços abertos.
 
Nesses dias ela vem falar-me ao ouvido.
 
Estou aqui. Não te esqueças de mim. Um dia venho encontrar-me contigo. E então faremos a nossa viagem. Aquela que marcamos há tantas décadas. Atravessaremos o rio que nos separa. Mas não temas. É uma viagem calma. Uma viagem que virá após a tua tempestade terminar.

23.2.18

O Poço




Cais, às vezes, afundas
em teu fosso de silêncio,
em teu abismo de orgulhosa cólera,
e mal consegues
voltar, trazendo restos
do que achaste
pelas profunduras da tua existência.

Meu amor, o que encontras
em teu poço fechado?
Algas, pântanos, rochas?
O que vês, de olhos cegos,
rancorosa e ferida?

Não acharás, amor,
no poço em que cais
o que na altura guardo para ti:
um ramo de jasmins todo orvalhado,
um beijo mais profundo que esse abismo.

Não me temas, não caias
de novo em teu rancor.
Sacode a minha palavra que te veio ferir
e deixa que ela voe pela janela aberta.
Ela voltará a ferir-me
sem que tu a dirijas,
porque foi carregada com um instante duro
e esse instante será desarmado em meu peito.

Radiosa me sorri
se minha boca fere.
Não sou um pastor doce
como em contos de fadas,
mas um lenhador que comparte contigo
terras, vento e espinhos das montanhas.

Dá-me amor, me sorri
e me ajuda a ser bom.
Não te firas em mim, seria inútil,
não me firas a mim porque te feres.
Pablo Neruda

13.2.18

Poema Bandido




poema bandido
poema mendigo
da alma o pecador
que da dor se enebreia
para dela se beber

sente, rasga, canta
quais poetas traz acorrentados

estremece, deita, grita
quais palavras que se derramam para dentro

palavras essas que se dizem
palavras que se falam
que se ficam

e que por mil anos se repetem
levando consigo os condenados
poetas
destiladores das almas
poetas perdidos
de poemas bandidos

Photo from Ashsivils

29.8.17

Poema XIV




Juegas todos los días con la luz del universo.
Sutil visitadora, llegas en la flor y en el agua.
Eres más que esta blanca cabecita que aprieto
como un racimo entre mis manos cada día.
A nadie te pareces desde que yo te amo.
Déjame tenderte entre guirnaldas amarillas.
Quién escribe tu nombre con letras de humo entre las estrellas del sur?
Ah déjame recordarte cómo eras entonces, cuando aún no existías.
De pronto el viento aúlla y golpea mi ventana cerrada.
El cielo es una red cuajada de peces sombríos.
Aquí vienen a dar todos los vientos, todos.
Se desviste la lluvia. 
Pablo Neruda

28.8.17

Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!




Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!
Supor o que dirá
Tua boca velada
É ouvi-lo já.
É ouvi-lo melhor
Do que o dirias
O que és não vem à flor
Das caras e dos dias.
Tu és melhor — muito melhor! —
Do que tu.
Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.
Mário Cesariny

21.3.17

A força que as minhas palavras têm




Que força as minhas palavras têm
quando na boca dos outros são ditas
Que força as minhas palavras têm
quando nos peitos dos outros se ouvem sentidas

Que força as minhas palavras têm
quando se me rasgam nas pontas dos dedos
quando em força se entram nos olhos adentro
quando com elas cabeças se acendem

Que força as minhas palavras têm
no poema que se quis nascer
mas que já não se pode fazer
Pois que nas forças dessas palavras se foi
toda a força que delas podia sobreviver.

8.3.17

Mulheres que trazem o mar nos olhos




Há mulheres que trazem o mar nos olhos
Não pela cor
Mas pela vastidão da alma
E trazem a poesia nos dedos e nos sorrisos
Ficam para além do tempo
Como se a maré nunca as levasse
Da praia onde foram felizes
Há mulheres que trazem o mar nos olhos
pela grandeza da imensidão da alma
pelo infinito modo como abarcam as coisas e os Homens...
Há mulheres que são maré em noites de tardes
e calma



SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in OBRA POÉTICA (Ed.Caminho, 2010)